segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Paradoxo do homem do cassino





Cedo percebeu que não era o filho preferido da sorte. Se houvesse chance de algo dar errado, daria. E dava, o tempo inteiro, os tombos sem motivos, as coisas jogadas do alto que insistiam em pousar na sua cabeça, a perda de coisas importantes, as calças rasgadas, a comida que derramava em sua camisa,...



O nome era ridículo, motivo de deboche na escola. A aparência, não muito diferente, o deboche, um pouco mais intenso.

Por mais que estudasse não tirava boas notas, por mais que se esforçasse, não sabia jogar como os outros meninos, por mais que tentasse, tanto menos conseguia.

Perdeu a família num acidente de carro, no qual só ele sobreviveu, sem nenhum arranhão.

Conforme crescia, foi percebendo o cruel jogo que o azar o obrigava a participar. Ele nunca chegaria onde queria, mas não ficaria muito atrás. As tragédias nunca seriam intensas demais, ruins demais. O azar só queria mostrar quem estava no controle. Queria brincar, e como uma criança travessa, sempre ganhar. Não havia como desistir ou mudar as regras.

Casado, foi traído, pelo melhor amigo do filho.

O seu melhor amigo, traído, e a desconfiança recaiu sobre ele.

O filho, morto quando caiu na calçada e bateu a cabeça. Enquanto todos ficaram horrorizados com tal fatalidade, boba e estúpida, ele permaneceu inalterado. Era o azar, rindo dele.

Os poucos conhecidos não se importavam com as corriqueiras fatalidades que o acometiam. E ele nem fazia questão de torná-las públicas. Seria mal compreendido, seria dar vantagem ao seu maior inimigo.

Já havia quebrado dezesseis ossos. E agora uma bala perdida alojada em seu coração era uma pena de morte, ou não. A bala podia movimentar-se e fazê-lo morrer sofrendo dores terríveis ou podia permanecer, silenciosa e indolor. A angústia era filha do azar.

Ele sempre passava em frente daquele cassino quando voltava do trabalho. Naquele dia, entrou. Sem esperanças e sem justificativas. Ele sabia que seu inimigo não baixaria a guarda. Mas ele queria sentir aquilo, aquela adrenalina que percorre o corpo quando não se sabe se o próximo sentimento é de alegria ou tristeza. Aquela incerteza de não se saber para onde se vai. De não conseguir fingir que se pode ensaiar o futuro.

Jogou e ganhou. Ganhou! Sua surpresa diante da vitória foi imensa. Como assim? O azar resolvera encerrar o jogo? Era um sinal de que estava livre? Ele estava sonhando? Ele estava mesmo num cassino e ganhara um milhão?

Saiu do cassino carregando dinheiro e esperanças. De que agora seria diferente. A sensação da certeza de que para ele não havia certeza em nada, que era o azar que decidia como sua vida caminhava, começava a se esvair, conforme os sonhos de uma nova vida nasciam e se multiplicavam aos montes.

Uma pontada no peito. Quanta coisa poderia comprar! Quantas viagens! Um celular novo, não, dois!Largaria o emprego, iria conhecer os melhores hotéis...Entrou em seu apartamento, sentou-se na mesa da cozinha e continuou planejando como aproveitaria a nova vida. Mais uma pontada no peito, agora mais forte. E mais uma. Colocou a mão no peito e rolou no chão. Lembrou-se da bala. Não era possível! Não podia morrer agora. Não hoje. Lembrou-se do azar, era ele. A fúria e a raiva nunca tinham sido tão grandes. Não podia ser verdade! Porque era obrigado a participar de um jogo tão cruel? Porque isso acontecia com ele? O que ele fizera para merecer ser tão humilhado e esculachado? Porque não conseguia fugir? Ele ganhara um milhão e agora o azar o mataria? Era assim que o jogo terminaria?

Não. Não mais. Juntou as forças que lhe restavam e rastejou até o quarto. O rosto ruborizado, o suor escorrendo pela pele, os dedos cravavam tão fundo no peito que a pele estava vermelha, as unhas faziam sangrar. Entrou no quarto, caiu, rogou pragas aquele inimigo de tão longo tempo que agora não teria mais poder sobre seu destino, foi até a gaveta. Dessa vez decidiria a própria sorte.A arma disparou. O projétil permanecia silencioso em seu coração.

Raquel Soares Warmling

Fonte: Texto deixado pela genial cronista prodigia Raquel Soares Warmling.

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